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domingo, outubro 23
Dossiê Negri
Pessoal, a seguir há 10 posts sobre a palestra do Antonio Negri ontem em Nova Iguaçu. Queria dizer que o relato online se diferencia do das mídias tradicionais. São impressões minhas, em que tento ser o máximo possível literal em relação às palavras e fatos que rolaram na palestra. Isto porque o que eu escrevi veio muito de tradução, então sempre rola aí uma traição, principalmente porque as tradutoras espontâneas às vezes não dão sequência à fala do palestrante, o que fez com que eu desse um certo prosseguimento a algumas falas soltas do Negri.
Cheguei ao RJ, ontem. Comprei O Globo no aeroporto. Sabia que iria sair alguma coisa do Antonio Negri. Para minha surpresa tinha duas páginas. Delícia, li tudo rapidamente. Cheguei no hotel. Não podia entrar: só depois das 12h. Circulei pela cidade: Copa (tomei café), depois Botafogo (me sinto em casa lá, onde fui a Prefácio ver e comprar alguns livros). Almocei no shopping Botafogo. Já eram 12h. Entrei no hotel meia hora depois.Queria ir a Nova Iguaçu, onde ocorreria a primeira palestra do Negri, chamada de A riqueza dos pobres. Liguei para Francis: "eu vou", disse. Ela: "Tá maluco. É longe demais. Mas cuidado ao voltar". Aí me desanimei, é muito longe mesmo. Pensei em um plano B: assistir Eros, de Antonioni e Sandermberg. Aí resolvi ligar o Beppo (Giuseppe Cocco): "Tem uma vaga no carro. Vamos lá. Vamos sair às 13h30 do hotel Ipanema", ele disse. Maravilha. Corri, tomei banho, comi rápido, peguei um táxi e cheguei lá pontuamente.
[concentração] Como é bom ver os amigos. A amizade tem uma potência especial. Lá encontrei Beppo (muito feliz), Léo (Leonora Corssini) e Geo (amigos da Revista Global) e Yann Moulier (sociólogo francês). No saguão do hotel esperavam o Negri, que desceu uns 10 minutos depois que cheguei. Achei que ele está melhor que em 2003. Antes parecia mais "velhinho", agora, como diz minha avó, estava "mais corado". Fico impressionado ao vê-lo porque me parece que ele tem um olhar de incompreensão, no sentido de perceber, diagnosticar, entender a realidade e se colocar com uma visão de porque "os homens são assim". Ele tem respostas, mas queria poder ter mais respostas, porque sabe que as suas são poucas. Na entrevista ao Caderno Prosa e Verso, do Globo, ele difunde o pensamento do amor ao outro como condição da produção de encontro, de reuniões, de movimentos. No fundo, talvez, a idéia é utilizar o amor como condiçãopara dizer que "os homens podem não ser assim". Sem ser piegas, acredito que a filosofia dele nos contamina por conta de uma mensagem de não-ressentimento do mundo, mas de crítica a ele. O tempo do meu olhar de observação foi o suficiente para chegar companheiros de caravana. Fomos em três carros para Nova Iguaçu, uma cidade que lembra Cariacica, no ES. Totalmente excluída de tudo e com uma gestão de esquerda para reerguê-la.
[Vai começar a palestra] Chegamos lá em ponto às 14h. Já não tinha mais fone (de tradução) para todos. Mas consegui o meu. Também já não tinha lugar para todos. Era um teatro para 140 lugares. Estava lotado. Sentei no degrau, no meio do teatro, entre os dois blocos da esquerda. Queria ver tudo de frente. Nem à direita, nem à esquerda. Centrado. Havia muitos petistas (com a arrogância e a auto-suficiência de sempre, mas também com o desejo de transformar o mundo de sempre). O prefeito Lindberg Farias já conversa com Negri eo Beppo na mesa de palestrantes. Sentei em frente à mesa, no meu degrauzinho, como em um cinema lotado, o filme ia começar. O Mestre de cerimônia ler uma curta biografia do Negri. Abriram as cortinas. O prefeito fala da satisfação do Negri em Nova Iguaçu, blá, blá, blá... blá, blá, blá... A platéria mexe as pernas, quer ouvir o filósofo. Ele pega no microfone. Agora vai.
O prefeito Lindberg Farias contextualiza o local onde a fala de todos estavam localizadas: "estamos em uma cidade de 1 milhão de habitantes. Aqui 50% não tem esgoto em suas casas. E essa cidade vai discutir com uma dos maiores pensadores de esquerda do mundo". O prefeito cria um clima cordial e também produtivo (como mobilizar uma cidade para reverter a miséria?).
Negri começa a sua fala. Retoma a metáfora da transformação. Afirma que ela é útil e é o ponto de aglutinação da militância da esquerda (um certo devir esquerda, eu diria). "Hoje a transformação do mundo passa por dois aspectos. Romper a potência neoliberal do poder americano e criar frentes comuns de resistências, novos espaços de liberação. A situação é dramática, por vários pontos de vista", apontou o filósofo sobre o fato de o poder impericano produzir estratégias de mobilização social e a necessidade de se criar uma liberação e uma resistência a isto.
A globalização pertubou o pensamento socialista, diz filósofo
Negri ainda realçou o impacto do processo de globalização no pensamento e prática da esquerda no mundo, ao afirmar que a globalização chacoalhou a idéia do que seja transformação. "A globalização pertubou o debate e o pensamento socialista, porque propõem a unidade na ordem mundial. Unidade do mercado (o controle da moeda). Unidade do uso da força (como estratégia de exercício da soberania imperial). Unidade das condições de comunicação (a mídia como único relato)".
O filósofo afirmou a impossibilidade de negar esse processo. Um leitor de Negri deduzia a partir dessa fala que antes havia uma perspectiva do fora (o regime socialista soviético e suas derivações), algo que não há mais hoje. Há uma ordem mundial única, mas que dentro dela figura sujeitos de liberação, de resistência produtiva. "Ou se aceita o jogo dessa complexidade ou não há qualquer possibilidade de mudar a esquerda. Vamos pensar, por exemplo, a noção de classe operária sob a perspectiva da globalização. A classe operária - como é pensada classicamente - está isolada, porque os mecanismos de valoração da mercadoria não está mais dentro das fábricas, mas fora delas. A valoração está nas camadas intelectuais do trabalho. Então a redefinção do que seja classe operária passa por integrar essas camadas intelectuais".
"Aumentado de fala", Negri vai chegando em uma alta frequência , quando afirma que não é a necessidade que move o sujeito. Soa como um soco a ideologia da esquerda tradicional. O que move o sujeito é a luta. "Não existe necessidade objetiva. Não há isso. O que há sempre é uma luta constante para resistir aos mecanismos de produção da miséria", diz.
Em seguida traduz a sua visão sobre que seja a riqeuza do pobre. "A pobreza tem dois rostos, dizia Marx. O primeiro é o reduzido pelo capitalismo com seus processos de exploração. O outro rosto é o máximo de potência. O pobre tudo pode produzir. Ele tem de produzir por viver no limiar da ausência". Toni Negri aponta para os militantes declarando que esse é um paradoxo produtivo, que não podemos esquecer ao fazer militância.
"Não é o Partido que vai nos salvar da globalização"
O tom ácido a certas visões conservadoras da esquerda, principalmente àquelas que demarcam o protagonismo do partido como vanguarda, faz Negri apelar ao nosso realismo:
"Não há mais como construir o Partido. Não é o partido que move o mundo. Olhe o caso do Movimento de Seattle, que mobilizou múltiplos sujeitos contra essa ordem única. É necessário substituir os princípios leninistas por princípios democráticos. Na Itália, fizemos isto na década de 70, redefinindo e modificando o que era ser operário, trabalhador. E operário não era ser trabalhador fordista. Fizemos isto atravessando, reencontrando os corpos, para além da ideologia, vendo como os trabalhadores criavam, se reuniam, viviam, cooperavam e se expressavam. O movimento impôs uma mudança. Mudamos então o que era a classe operária. Não era mais a classe operária fordista. Mudamos com isso o poder capitalista, que teve que se transformar. Portanto, o mundo multilateral pode ser consolidado se na Europa e na América Latina essa forma de ser esquerda se afirmar", discursa.
Aplausos, aplausos, aplausos. A platéia reage. É a primeira afecção.
Aquilo que era esperado de Antonio Negri seria o comentário sobre a crise política no Brasil e o devir esquerda. Engraçado que a fala era esperada no mesmo dia que o P-SOL se envolvia com a crise também, com o recebimento de mensalinho de um senador do partido. Negri contextualiza a crise política brasileira como algo que não se restringe à nossa localidade.
"Não me assusta a crise. A crise envolve um impulso descrescente da política, ao mesmo tempo em que há um impulso crescente das lutas sociais. Veja o caso das lutas globais. Se é verdade que o ciclo de lutas globais está em crise é porque o poder neoliberal também está. Eles [o poder americano] perderam. E há nessa forma de perda a derrota do capitalismo. As lutas políticas tem de acontecer novamente. Elas que vão mexer com o capitalismo. Na Europa por exemplo, elas estão ocorrendo. É a luta do precariado. Contra as formas de precarização do trabalho. A luta é por deslocamento, pela renda mínima. É o cognitariado tirando impulso, força, da miséria em que se vive. É tão séria que a luta é também contra o sindicalismo. Por que o sindicalismo defende o emprego, benefício somente pra quem tem salário. No Primeiro de Maio o precariado foi às ruas também contra os sindicatos que não mais o representa. É só dentro desse quadro geral de crise que podemos resolver os problemas".
Negri é indagado pelo prefeito Lindberg Farias: como acumular forças para produzir a mudança social? O ex-deputado relata que no Brasil as forças de esquerda realizaram aliança com setores da burguesia nacional (como um contraponto às forças monetaristas) e acabou "não dando certo". O resultado foi a crise política. O filósofo italiano responde que viu e viveu uma repetição de crises da esquerda. Concorda que a capacidade de resistir tem muito haver com o acumúlo de força, de alianças. Mas deu opinião que levou a aplausos longos pela platéia:
"Estou convencido que é fundamental tentar sempre novas aberturas, como se aliar a setores da produtivos, como a indústria, diante do que é o parasitismo do sistema financeiro. Só que hoje existe uma outra abertura que precisa existir: a abertura às forças do conhecimento. Não podemos subestimar as forças do conhecimento. Esse é um fato estratégico do desenvolvimento econômico mundial. Pode parecer realista demais, mas não é. Ao contrário, é alta a necessidade de articular projetos sociais com a produção intelectual. O que está acontecendo no século pós-socialista: o trabalho está ficando cada vez menos industrial. Os capitalistas, através das técncias neoliberais, mobilizaram socialmente a produção. Colocaram a sociedade no trabalho. E são os intelectuais que dão valor à produção. Impõem a possibilidade de mudanças industriais, formam novas elites. O trabalho intelectual é um elemento fundamental que não exclui o capitalismo (por isto que o poder neoliberal se articula) . Então é necessário se abrir à força do conhecimento para compor uma novo acúmulo de forças, para produzir novas resistências. Entrar nesse terreno é produzir uma ética do comum. Muitos amigos me indagam dissendo: 'Nossa, mas você não ver quanto miséria tem aqui do seu lado'. É um discurso que dá entender que o trabalho imaterial é algo utópico frente à realidade de miséria. Mas é o contrário. Só esse setor (o intelectual) renova a sociedade e expulsa essa miséria. Não adianta: a aliança com a indústria não vai fazer voltar o pleno emprego. Agora para produzir trabalho intelecutal, imaterial, é preciso ser livre. Por isto que o capitalismo bota limite a liberdade hoje, coloca a não-expressão. E a liberdade do trabalho intelecutal pode vencer o capitalismo. É necessário organizar o precariado, que são todas as pessoas que trabalham fora da relação salarial, como os trabalhaodres dos serviços, dos servi;os industriais, os imigrantes, os informáticos etc. Essas são massas que estão se tornando as maiorias. Não é à toa que na França foram às ruas contra os sindicatos. É porque o sindicato ainda sustenta que o emprego é a única solução. E o precariado produz fora da relação salaial, produz na circulação social. Por isso que projetos como a renda universal e a política de cotas se tornam centrais: nào é um prêmio, é a base para mobilizar toda a sociedade.
Novamente, a platéia foi além dos aplausos, gritando muitas interjeições. Foi o momento mais legal. Senti que as pessoas completamente conectadas. A miséria nossa de cada dia foi valorizada e potencializada. O papel de Negri, como filósofo, se realiza. O prefeito Lindberg atento e completamente tomado. Todos nós. Beleza.
No debate, Giuseppe Cocco critica "Estado Racista"
Em um debate importante, o autor de Global destca que o problema do Brasil não é só o neoliberalismo, mas o Estado:
É preciso colocar a produção do saber no interior das produções das lutas. Isto para acabar com a dimensão elitista brasileira. Acabar com a desigualdade universitária no Brasil. Nomadizar é criar novos espaços de saber e espaços de lutas. No Brasil 2,7% das pessoas estão dentro das universidades federais. Saber no Brasil significa que um outro não saiba. Em um contexto de produção imaterial, de economia do conhecimento, isto nos paralisa. E isto (a não universalização) fez com que a educação superior se tornasse um grande business a partir da década de 90. O problema do sucateamento da universidade no Brasil não é o neoliberalismo. A universidade foi sucateada pelo corporativismo. Para cada professor há cinco alunos na Universidade. Na minha universidade [Cocco é professor da UFRJ] as greves são decididas por 20 professores. E todos os outros 3 mil ficam em casa recebendo sem trabalhar. Muitos não contestam. O neoliberalismo é muito pouco historicamente. São só dez anos. O que sucatea é um estado escravagista, autoritário, patrimonialista, que existe há vários séculos. Com isto não estou tirando o peso do neoliberalismo como produtor de miséria. Mas o problema do Brasil não é o neoliberalismo, é o Estado. O neoliberalismo integra pelo mercado. Dá telefone celular pra todo mundo e depois todo mundo se vira para trabalhar e pagar a conta no final do mês. É perverso isto. Mas a Telerj não conseguiu dá telefone pra todo mundo.
Giuseppe estava afiado. Cotagiou a platéia também a sair do clichê midiático que a solução brasileira é a redução de juros e a mão salvadora do Palocci.
A solução no Brasil passa pela radicalização da democracia. 1 milhão de dólares para despoluir a baía de Guanabara pode ser nada se não houver democracia. Pode ser uma cifra inflacionada. Vai passar o tempo e baía vai continuar poluída. Os juros é um problema do Brasil, mas a redução deles não necessariamente resolve os nossos problemas. Isto porque a maioria das pessoas não tem sequer conta bancária. E pior do que os juros são os preços. Para o pobre, é melhor ter juro alto para ter preço baixo. Do que ter inflação. Henrique Cardoso ganhou duas vezes a eleição pois optou por isto. Não há como a gente esperar mais uma política econômica salvadora. A política econômica não vai possibilitar a universalização do emprego salarial. Esse é um horizonte impossível, mas que as esquerdas ainda acreditam, de forma abstrata. A política econômica está presa à irreversibilidade da globalização, à interdependência dos mercados. Temos que optar e perceber que é a política social - e não só a econômica - que pode modificar a estrutura econômica brasileira. Veja o caso da bolsa-família. É uma política para os pobres. É uma política revolucionária. Apesar de alguns setores do governo e da sociedade pensar que ela seja só uma política compensatória. O pleno emprego não é mais horizonte. Ter renda, hoje, é poder construir a condição a priori para ser produtivo. Antes, no pleno emprego, ser produtivo é uma condição a posteriori. Só tendo salário pode se ser produtivo. A bolsa família, ao possibilitar a renda, impulsiona o cidadão para uma produtividade. As cotas também são revolucionárias, pois insere na produção de saber aqueles que sempre foram marginalizados pelo Estado autoritário e racista . O saber é o centro do capitalismo atual. Então são as políticas socias que possibilitam a integração econômica. Não há como esperar uma nova política econômia para ser política social.
Negri fechou a sua participação convocando todos para uma conversão ideológica. Uma ruptura geracional. Muitos já formulavam a sua opinião sobre a palestra, principalmente, os sindicalistas ficaram chocados com alguém que acabaram com os seus clichês e não perceberam que a filosofia de Negri trazia para eles uma possibilidade de liberação. De aumento de liberdade. Mas como sou da comunicação, sei que o efeito do discurso é de longo rpazo, mesmo que tenha respostas de curto prazo. Não sei o que vai ficar para as pessoas de Nova Iguaçu que estiveram lá, mas pelo menos vão ter um dilema ideológico para ser resolvidos nos grupos de miltância. Negri aponta a sua última fala como uma chamda para a construção de um outro mundo: imanente e não transcedente. Real e não abstrato.
A miltância hoje não é distribuir panfleto, colar cartaz, dizer palavras de ordem. Militar é investigar. Fazer pesquisa para entender esses desdobramentos do trabalho. Identificar a capacidade produtiva do trabalho para fazer militância. É um trabalho cultural. Queria dizer algumas outras coisas: a divisão do primeiro e do segundo mundo é cada vez mais volátil. E nas sociedades onde o peso colonial ainda é forte (onde o problema de raça persiste) as políticas de cotas libertam as amarras coloniais. Hoje o que é a precarização no primeiro mundo se aproxima muito do que seja a exclusão no terceiro. Como responder então a precarização e a exclusão? É a mesma resposta que daria para como responder a crise política no governo Lula: qual é o nosso nível de acúmulo de indignação e de insuportabilidade? Isto é importante, agora, não para organizar caminhos de fuga oportunista, mas para acumular ruptura de base. A globalização não tirou a possibilidade de transformar o mundo, mas diluiu sobre toda a face da terra essa possibilidade. Há várias cargas políticas hoje no mundo pronta para explodir. Temos de reconhecê-las para guiá-las. Hoje portanto o grande problema é se inserir no mercado mundial buscando localizar essas questões. Não se trata de auto-flagelamento, mas estar sempre pronto para uma tentativa de renovação. Fim de papo, mas não de afecções... amanhã continua no Capanema.